- Oi vó linda! Que saudades!
- Oi bem. Quem é você mesmo?
- Sua neta. Adriana.
- Ahhhh. Muito bonitinha!
- Filha da Ada.
- Você conhece a Ada?
- Sim vó. A Ada, sua filha. Minha mãe.
- Minha querida! Você mora no meu coração.
- A senhora também mora no meu coração vó.
- Oi mãe.
- Quem é você?
- Seu filho Samir.
- Samir.
- Comprei isto aqui, vai resolver nossa vida.
- O que é isso tio?
- Crachá. Agora todo mundo vai usar crachá. Assim a Linda vai saber quem a gente é.
Na manhã seguinte a família toda carregava o nome no peito, até a neném de seis meses tinha um crachá no babador. Dona Olinda, que perdeu a memória mas ainda tem a vista perfeita, passou a ler os nomes escritos sem ajuda de óculos.
- Rosa Maria! Tão bonitinha.
- Oi Linda.
- Tamar. Sérgio. Kiki. Luana. Lucas.
Vó linda começou a cantar:
- Ciranda cirandinha, vamos todos cirandar- logo todas as pessoas presentes engrossaram o coro- vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar. -
Vó Linda findou a cantoria dizendo :
- Aleluia.- e levantou os braços pronta para os aplausos.
- Vamos passear com a Linda.
Na rua, duas moças passaram. Vó Linda diminui a velocidade dos passos e falou com a desconhecida:
- Oi querida. Como você está? Passa lá em casa tomar um café.
- Humhum- responderam segurando o riso.
- Quantos anos a senhora tem?
- Adivinha.
- Hum- disse a moça brincando- 33.
- Não, muito mais.
- 55.
- Mais.
- 70.
- Ela tem 94 anos- respondeu a nora da vó Linda.
- Aí também já é de mais!- rebateu vó Linda.
Em casa, vó Linda sentou no sofá, pegou uma revista e passou a ler as manchetes em voz alta:
- “Militares Acusam Exército de Punir Atuação Política.”
“Luana Piovani não Tem mais Dado. Dorme Sozinha”.
- Vó Linda, vamos tomar lanche.
- Geléia de morango. Suco de uva.
- Quer café Linda?
- Pão integral. Requeijão cremoso.
Vó Linda mal tocou na comida, mas leu o rótulo de todos os alimentos na mesa.
- Linda, eu lembro tanto do vô Assad.
- Ah, você conheceu o Assad?
- Ele era meu avô, lembro bem dele vó. E a senhora, lembra?
- Ele gostava muito de mim.
- E a senhora, não gostava dele?
- Claro. Mas sempre escondia um bocadinho.
Aos 94 anos, vó Linda, Olinda, não reconhece ninguém. Mas não esqueceu as sutilezas do jogo do amor.
- Onde você vai com esta mala bem?
- Para o aeroporto.
- Pra que vai embora?
- Tenho que ir vó. Vim só pra te ver. Dá um abraço...
- Tão bonitinha. Mora no meu coração. - pegou o jornal e continuou a ler as manchetes- "Delfim Neto avisou: transformando cocô em ouro e vendendo-o para otários."
“O passado nunca morre. Realmente, nem sequer passa”
William Faulkner