quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Pulo- do- Gato

“Mister” Serafini, professor da quarta-série, sim, aqui há vários professores homens- pediu voluntários para ajudar as crianças na construção de suas marionetes. Já tinha fugido durante um ano inteiro do trabalho voluntário na escola, fui pega na marra e tive aquela experiência fatídica, lembra, tirando xerox. Definitivamente, prefiro gente à máquina. Mas, diante do apelo e passado o trauma, decidi voltar e ajudar.

Havia mais gente lá:
- Você é brasileira?- perguntou um dos pais voluntários.
- Sim.
- "Sardinha." É a única palavra que conheço em português.
O homem me contou que aprendeu a falar sardinha com um brasileiro que cortava a grama da sua casa. O sujeito foi pego pescando sem licença e enjaulado antes que pudesse ajudar o americano ampliar seu vocubulário em português.

Enquanto aguardávamos, li alguns textos das crianças que estavam expostos na parede da escola: “O momento mais importante da minha vida- dizia um deles- foi quando eu tinha dois anos e consegui pular dois centímetros. Você deve estar pensando, grande porcaria um menino pular dois centímetros! Mas ninguém acreditava que eu pudesse pular, e eu pulei. Hoje consigo saltar muito mais do que isso.”

Logo conheci o autor do texto, um menino de nove anos, que veio andando com dificuldade. Ao lado do texto, ele colou a foto de um campeão de corrida a curta distância com a legenda:

“Este é meu herói”.

Este menino não perde tempo se lamentando de seus limites físicos e sabe celebrar suas próprias conquistas.
Isto sim é um verdadeiro pulo-de-gato.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Vô Assad





Assad chegou ao Brasil, vindo da Síria, aos 17 anos. Moço comprido, fino e de poucas palavras. Conheceu Olinda. Ele foi visitá-la umas três vezes, tendo a família dela policiando, como era de costume na época. No quarto encontro ele estava aprumado num terno e gravata esperando Olinda vestida de noiva. Após a festa, os dois foram para a estação de trem. Enquanto aguardavam em silêncio para embarcar, com as malinhas na mão, Olinda pensava o que seria exatamente esta tal lua-de-mel. Nazira, mãe dela, nunca explicou pra menina de 16 anos o que o casal faria ali. Mas Olinda era esperta, adivinhava da safadeza. Sentaram em silêncio.
- Piui-tcuctuctuctuc....
A paisagem começou a andar pela janela, Assad quieto. A menina então pensou:
- Quem é esse homem que vou viver pro resto da vida?- é, naquela época separar não era uma opção.
Olinda chorou, discretamente. Assad percebeu, não disse palavra, mas fez com que ela deitasse sua cabeça em seu ombro.
Viveram juntos a vida toda. Olinda parece que gostou da lua-de-mel, e os dois povoaram a casa com 5 filhos, depois netos, bisnetos. Vô Assad construi riqueza com esforço. Por isso tinha paúra de gastar dinheiro. Colocava gasolina, mas o mínimo necessário para andar uns poucos quarteirões na cidadezinha em que moravam. Não era bom de cálculo, e seu carro, uma Variant , deixava-o na mão sempre antes do destino final.
Jogava toda semana na loteria. Sempre coluna um.
- Mas vô- dizia meu primo- este time é muito ruim.
Assad não se abalava, marcava o cartão sem mesmo ler o nome dos times.
- Sabe porque?- explicava- se eu ganhar, ganho sozinho.
Lugar para guardar o dinheiro, caso ele ganhasse na loteria, ele já tinha. Era um cofre preto e grande, que só abria depois de virar o botão para a direita, para a esquerda, uma infinidade de números que só Assad conhecia o segredo. Imaginávamos tesouros de pirata lá dentro.
Depois de muito tempo espiando, conseguimos convencê-lo a abrir o cofre e mostrar sua fortuna. Vô Assad alto, rodeado dos pequenos netos curiosos, enfim abriu aquela porta. Apenas papéis, cartas e fotografias. Ficamos decepcionados, não tinha ouro reluzindo ali. Nem um tostão.
Não perguntei para meu avô de quem eram aquelas cartas, ou aquelas pessoas na foto.
Meu avô foi imigrante numa época em que não existia internet, skype e todos os apetrechos que tornam a vida de quem mora longe de casa um tantinho menor. Vô Assad nunca mais reviu seus pais, irmãos nem sua terra natal.
Há tempos ele morreu, mas a poltrona laranja ainda está lá com a marca de sua cabeça no encosto e o cofre preto também. Na época não entendi o valor do que ali era guardado.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Não era só um filme


- Hitler era uma criança com necessidades especiais? - o menino perguntou assim que o filme acabou. Sua irmã e as meninas riram.
- Hitler special needs! Adorei, Kamper.
- Sabia que tem um menino special needs na minha classe que briga com todo mundo?
- Morreram muitas crianças na guerra. Muito triste.
- Coitados. E se não fossem os judeus, a gente teria aula hoje, imagina que chato.
- No Brasil acho que não é feriado, minhas amigas lá têm aula no Yom Kippur.
- Eu também tenho um diário - comentou uma das meninas.
- Aposto que nem se compara com o da Anne Frank, doh - a irmã comentou cortando a onda da caçula.
- No Pessach a nossa vizinha Ariana e a irmã dela ganham um presente por dia.
- Durante sete dias, são sete presentes! Nisso os judeus são sortudos.
- Mas eles não ganham presente no Natal.
- A Katriane ganha. O pai dela é judeu e a mãe não.
- Nossa, ela ganha muito presente.
- Mas você viu quantas crianças judias morreram no campo de concentração?
- So sad, so sad.
- Mãe - a caçula chamou - juro que não vou mais reclamar da comida.
- Você viu? Eles não podiam nem comer.
- Mãe, o Rodney lutou na Segunda Guerra contra os alemães?
- Quem é Rodney?
- Nosso vizinho.
- Não, ele nem existia. Ou era ainda um bebê.
- Imagina se só o papai sobrevivesse, como no filme? E se a Juju ficasse doente e eu tivesse que cuidar dela e a mamãe morresse?
- Ai, so sad - repetiu o menino. - Tem mais pipoca?
- Eba! Também quero. Vamos brincar no parque?

domingo, 5 de outubro de 2008

Chega o Outono, Vão-se os Stearns


O verão vazou e foi embora com setembro. Festas nas ruas festejaram o último dia da estação. O outono e as abóboras do mês de Halloween invadiram a cidade colorindo tudo com diversos tons de laranja.
Perry é uma rua no bairro de Kensington. Quem mora ali, não importa se é proprietário ou inquilino, assina um contrato que inclui uma cláusula inquebrável- no dia do Halloween, todas as casas têm que ficar apavorante: vale luzes, velas, monstros, moradores assustando as crianças, labirintos. Há anos a pacata rua Perry se transforma em Scary Perry no dia 31 de Outubro.
Na esquina da rua Perry, tem umas das casas mais aconchegantes da cidade. No quintal um imenso tanque de areia e uma casa na árvore que o próprio Stearn construiu. Ele é jornalista e trabalha na Casa Branca. Jodi dá plantão em hospitais três noites por semana. Selma, a menina mais loira que a gente já viu na vida, de óculos e olhos curiosos de mundo e Kamper, seu irmão mais novo, tão loiro quanto ela, cara de anjo e um danado encantador.
O caçula nasceu na África do Sul, onde a família morou por cinco anos. Há quatro voltaram de lá:
- Voltar foi mais difícil do que ir. Embarcar para a África era uma experiência tão nova, tudo era fascinante, com gosto de novidade. A volta é o retorno a mesmice. - Jodi nos disse logo que a conhecemos.
Jantamos muitas vezes na casa deles, os quatro entraram o ano novo com a gente, deixamos filhos uns nas casas dos outros para viajar e ir à festas.
Assim que o Hallowen passar, vai levar embora os Stearns. Eles partem para o Senegal e ficarão por lá durante três ou cinco anos.
Chega o Outono, vão-se os Stearns.