domingo, 25 de fevereiro de 2007

Preto no branco


Aqui os afro-americanos, que é a maneira politicamente correta de se referir aos negros, frequentam bons restaurantes, têm carros de último tipo e um padrão de vida muito superior ao dos negros do Brasil. Só que negros e brancos não se misturam. Mulato ainda não vi nenhum.
Há uma família negra no condomínio em que moro. Vieram de um bairro onde eram maioria e aqui estão. As duas irmãs, Cassandra e Moandra, vão sozinhas até o ponto do ônibus escolar e depois também voltam sozinhas para casa. Quase sempre estão atrasadas. A mãe trabalha o dia todo para manter a família. O pai? Está no Texas. Moandra carrega a pesada mochila, um enorme instrumento musical e o peso de ser responsável pela risonha caçula. Cassandra prefere se divertir na neve quando deveria correr para chegar a tempo de não perder o ônibus. O que costuma acontecer com certa frequência.
Outro dia Moandra esqueceu a chave de casa na escola e só percebeu quando desceu do ônibus. A caçula andava atrás dela dando croques na cabeça da irmã:
“Why do you always forget the keys?”, e lascava outro croque.
Moandra, melancólica, nem revidava. As duas sentaram em frente da porta de casa e lá ficaram. Perguntamos se queriam almoçar e brincar com as meninas em casa até a mãe chegar. Elas estavam absolutamente despreparadas para este tipo de oferta. Moandra agradeceu e disse que não. A caçula olhou de um jeito que queria dizer que não concordava.
Ficaram. Passou uma hora. Passaram duas horas. Laura e Júlia espiavam com dó as meninas pela janela. Levaram chocolates para elas. A caçula aceitou, sob o olhar de reprovação da mais velha. Quando já era noite a mãe chegou. E de cara trancada, enfim, abriu a casa.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Línguas

Toda manhã as crianças do condomínio em que moro se reúnem no mesmo local para esperar o ônibus escolar. No primeiro dia em que levei minhas filhas até lá, ouvi três babás conversando em espanhol. Português e espanhol são línguas vizinhas e portanto é fácil a gente entender. Elas ainda não me conheciam e não sabiam deste detalhe. Assim, soltaram a língua e destilaram, em alto e bom som, um bocado de veneno sobre as patroas.
Uma delas, Chinita, veio com os filhos ainda pequenos. Dizia sempre: “Juro pela minha mãe que deste ano não passa, largo esta terra maldita e volto para minha Bolívia”.Vinte anos, três netos e severos invernos depois, ela parou de jurar que volta. Voltar para quê? Sua mãe morreu, sua irmã mudou de país e os amigos estão espalhados. Bolívia agora é só uma lembrança. A outra, veio com os patrões da Nicarágua e a terceira, Olguita, é do Equador. Lembram personagens de filmes do Almodóvar. A não ser Chinita, a boliviana, as outras não falam inglês, embora morem aqui há mais de dez anos. O diálogo entre elas e as crianças é surreal: A babá manda em espanhol, a criança responde em inglês, e não é que se entendem? Pela qualidade da interação, parece até que falam a mesma língua.
Mas agora que perceberam que entendemos o que falam, elas passaram a segurar um tantinho a língua. É uma pena.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Aula de inglês

Arthur, era este o nome do personagem que aparecia em todos os capítulos no meu livro de inglês do ginásio. Ruivo, branco, mirrado e atrapalhado. Muito atrapalhado. Pois não é que saiu do livro e agora é meu professor? Cara de um, fucinho de outro!
Um dos sujeitos mais tímidos que conheci. Só que seu ofício exige que passe quatro horas de pé em frente de nosso grupo. O livro que ele usa está carcomido, as páginas caindo. E as canetas de lousa, umas seis. Toda vez que ele tenta escrever, abre uma, vê que não funciona. Fecha. Abre a outra. Tenta. Necas de funcionar. Fecha. Pega outra. Dias, semanas e inúmeras tentativas depois, um colega sugeriu que ele pegasse novas canetas e novo livro com a secretaria. Não é que resolveu!
Mas seu talento para atrapalhadas resiste. Há uma mesa em que ele coloca seu material, e ao lado dela um lixinho. Inúmeras vezes, no meio de suas explicações, o sujeito consegue enfiar o pé e metade da perna que ali fica, entalada. Ele “discretamente”, sob o olhar de todos nós, balança a perna tentando se desvencilhar do lixo, enquanto continua dando sua aula como se tudo fosse absolutamente normal, certo?
Nossa turma é composta por dez alunos. Quatro coreanos, dois de Taiwan, dois poloneses, uma africana, e esta brasileira aqui.
Todos os orientais usam palmtop. Quando eles não entendem algo, tentam se ajudar. Um em cada canto da sala, falando na sua língua, alto. Os ploloneses e os de Taiwan idem, só que um pouco mais discretos. Como o professor é este ser que comentei acima, a Ásia e a Europa se instalam alí, enquanto nós apenas observamos aquela melodia de idiomas.
Do meu lado costuma sentar um dos coreanos. No primeiro dia de aula fui comer um chiclete, e ofereci para ele. O rapaz ria de alegria. Pegou toda a caixa para si, enfiou no bolso antes que eu tivesse chance de pegar ao menos um. Abaixava e levantava a cabeça enquanto dizia palavras que provavelmente significavam:

“Obligado, obligado.”

Retribui com um sorriso besta e não tive coragem de reivindicar meu chiclete de volta.
No intervalo, meu colega de Taiwan, que chama-se F, sim, a letra do alfabeto, apresentou-me à sua amiga de outra turma. Ela sacou um porta-moedas embrulhado para presente de sua bolsa e me deu. Agradeci .
No final da aula, o coreano rindo e balançando novamente a cabeça, entrega-me um pacote de salgadinho. Era uma retribuição ao presente que eu havia lhe “oferecido.”-
Bem, acho que na cultura deles é praxe presentear as pessoas novas que conhecem. Porque ninguém me avisou antes?
Pois é. Inglês, aprendi quase nada.
Mas vocês nem imaginam como meu coreano melhorou!

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Primeiro dia de aula

Júlia acorda sozinha e veste a roupa que preparou de véspera. Toma café animada. O ânimo é engolido com o leite:
“Mãe, não sei falar inglês. Não quero ir”, diz chorando.
Laurinha, que foi guinchada da cama, chega atrás de seus cabelos que escondem o rosto miúdo:
“Tudo bem, Jú. Qualquer coisa você diz: 'May I go to the bathroom?'”
Depois de gastar a melhor frase de seu vasto inglês, abraça a irmã, e veste sua capa de coragem.
Vão no ônibus escolar que sai de nosso condomínio, nós seguimos atrás de carro.
Vamos buscá-las. Nunca tinha recebido um abraço tão apertado das minhas filhas. Laurinha, sem derrubar lágrima, mas sem piscar seus olhos assustados, contou que assim que chegou, a professora pegou os lápis de cor do seu estojo.
“Mãe, ela pegou todos, e eu não sabia falar que eram meus, e não da classe."
Chegou a hora do almoço. Por precaução, anotamos seu pin number, sua senha para pedir o almoço, num papel e na palma da mão. Na fila, chegou sua vez: o papel ficou na mochila, e o número registrado na palma da mão havia sumido no suor do primeiro dia de aula. Conseguiu a comida assim mesmo, mas não comeu nada!
De volta a sala, o medo inerente a nova situação foi ao limite quando soou o alarme de incêndio.
A professora dava as coordenadas em inglês, Laura não entendeu nada, mas lembrou do nossso combinado: Siga o fluxo. Fila na porta da classe, saem da escola.
Provavelmente, era só um treino.
Já no final do dia, e no limite do controle, Laurinha pede socorro para a professora:
“I... bus... horse.”
Ao contar sua história para nós, Laura acrescenta:
"Que mico. Eu queria dizer house, e disse horse."
E a tensão do dia é aliviada numa sonora risada.

Escola

Na última sexta-feira, as meninas e nós, passamos uma hora na escola. Conhecemos as outras crianças, seus pais e as professoras : Miss Hawes, professora da Júlia e Miss Veneziano, professora da Laura.
Baltha e eu nos dividimos. Acompanhei a Jú e ele foi com a Laura- que se garantiu com quem melhor domina a língua, claro!
Combinamos de no final trocarmos de sala.
Não era um encontro formal. As crianças brincavam pela classe, irmãos menores circulavam por ali e os pais conversavam, reencontro após férias, como deve ser em todo planeta. As carteiras arrumadas em pequenos grupos de 4, formavam um aconchegante semi-círculo. O nome de cada criança distribuídos pelas carteiras. Miss Hawes se apresentava aos pais. Deve ter uns 26 anos, agacha para falar oi para os pequenos. Comprimentei-a e contei que éramos brasileiros, chegando e blá, blá, blá, que a Jú não sabia ainda falar inglês, nem eu, e tal. Na lata eu queria garantir uma atenção especial para meu rebento, que me olhava de soslaio sem entender bulhufas do que acontecia. Miss Hawes disse que a Jú era a única estrangeira da classe, que ela teria aulas de inglês mas que tinham livros de história em Italiano. O que na perpectiva dela seria facílimo da Júlia entender. Fiquei surpresa de não encontrar outros estrangeiros, afinal o site da escola mostrava dados bem diferentes. Enfim, a professora mostrou o lugar da Jú e deu um papel para ela responder algumas questões sobre as férias, mas que ela poderia desenhar.
No horário combinado o Baltha chega para a troca de sala. Antes de ir ao encontro da Laura, apresento-o à professora e me despeço dela com um beijinho no rosto. Nem adianta me dizer: “Mas não te avisaram que americano não tem este hábito?” Avisaram milhões de vezes. Mas simplesmente estamos impregnados de Brasil. Faz parte da nossa cultura. Pela reação de Miss Hawes, ficou evidente que não faz parte da cultura dela!
Encontro Laurinha desenhando. Mostra animada onde fica seu escaninho, o tapete de história e sua professora. Volta a desenhar. Quando acaba, vira a folha para que eu veja e olha para mim. Ali, escondida no desenho, vejo uma bandeira do Brasil. Ao lado ela escreveu: “quero voltar”.
Aprendi hoje uma expressão daqui:
“No pain, no gain”.
Peguei-a no colo, e não pegamos um avião de volta.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Vizinhos Taiwaneses

“Moving. Sale.”
A placa, perto da nossa casa, veio a calhar.
Ainda precisávamos de muitos móveis. Fui a pé com as meninas conferir. Uma Taiwanesa miúda nos recebeu. Com seu inglês oriental e o meu inglês cucaracho, travamos uma conversa. O marido trabalha na embaixada e estão aqui há 3 anos. Voltarão para Taiwan no meio do ano que vem, mas já colocaram a venda alguns móveis. Logo ela me previniu sobre o inverno americano: - “Terrible”.
O que fez durante estes 3 anos?
-“Big house. Big, big. I take care of my daughter and the house.”
Quanto aos móveis, necas. Gostamos mesmo foi da bicicleta da Cath, a filha de sete anos. Mas logo a pequena explicou, num inglês perfeito, que aquela não estava a venda.
Saimos de lá de mãos abanando e rapidinho. Não quero desperdiçar meu tempo na América engolida pela “my daughter”, nem pela “big house!!”

domingo, 11 de fevereiro de 2007

O vizinho e a vigia

Agora era a nossa vez. Tocamos a campainha do vizinho e entregamos o bolo. Rod nos convidou para tomar um vinho com ele no final da tarde. Ele mora só. É separado e tem dois filhos. Sua ocupação? Aposentado da CIA. Depois acrescentou, fazendo graça:
- “Agora passo o tempo vigiando os vizinhos. “-
Logo descemos para Rod nos mostrar o basement. Pendurada na parede, conviviam uma nojenta cabeça empalhada de porco, outra de vaca, uma de veado e a última eu já nem sei... Pois comecei a imaginar pendurada ali a cabeça das minhas filhas, a do meu marido e a minha.
Ao lado dos bichos, vinham as armas.
E do nosso lado, ou contra nós, Rod, o vizinho americano.

Vizinho

Chegando em casa, dei de cara com o nosso vizinho. Ele se apresentou:
- “Smith, Rodney Smith”.- Estendeu a mão, balançando-a num cumprimento.
- "Adriana"- apresentei-me. Ele continuou balançando a minha mão. Vestia uma camisa com desenhos de carros.
- "Eidriana", ele repetiu.
Enfim, soltou minha mão, deu boas-vindas e nos despedimos. Minutos depois tocou a campainha. Era ele, Rod. Entregou-me um pacote amarelo brilhante com uma garrafa de vinho dentro. Agradecemos, convidei-o para entrar. Disse que outra hora e tal.
A regra da boa vizinhança americana prega que em retribuição tenho que fazer uma torta ou bolo. E não vale comprar pronto, minha filha. Tem que por a mão na massa. Quem mandou morar no subúrbio americano?
Mas eu não sou de torta nem bolo. Provavelmente o bolo sairá duro. Uhhh, vai pegar mal retribuir com um “tijolão”. E o pior, parece que o sujeito é ex-combatente do Vietnã! Vai que se arreta, né?

Bandeira e baderna

Chegamos em agosto. Fui andar pelos arredores da casa à noite. O calor era violento, só dava para caminhar com a lua na cabeça. Tudo tão limpinho, arrumadinho e igual. Quase todas as casas ostentam a bandeira americana. Silêncio sepulcral. As pessoas somem quando o sol se põe. Cada um se fecha na sua casa, com sua família, no seu umbigo. Andando tive uma vontade súbita de arrancar as bandeiras, perguntar o que estavam fazendo, bagunçar um pouco a ordem pra ficar parecido com o Brasil. Claro que o ímpeto ficou preso na minha cabeça.
No Brasil, a gente só coloca bandeira na porta em época de copa do mundo. E quando o Brasil perde o jogo, o povo rasga e põe fogo. Nossa bandeira queima na baderna. A deles nunca sai da janela.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Preparativos

No Brasil, três casais que já haviam passado pela experiência de morar em Washington marcaram um jantar e me convidaram. Fui ficar a par de como seria nossa vida nos EUA. O jantar foi delicioso, regado a vinho. No início, eu só ouvia: "Experiência maravilhosa...", "Nossa, é o máximo". Depois da sobremesa quando as garrafas de vinho vazias ocupavam quase toda a mesa, uma das minhas amigas soltou na lata sua real experiência:
- Olha, eu entendo por que os americanos inventaram os fast-food. E por que são obesos. Lá, minha filha-- fez uma pausa para arregaçar as mangas da blusa e tomar fôlego -- a gente só cuida da casa, dos filhos. Lá não tem empregada não!!! Se eu ficasse um dia a mais, estaria igualzinha a elas.
Para me convencer de que ir era a melhor opção, comecei a elencar as maravilhas que meu marido, que já estava lá, havia me contado:
- Nossa casa é bem bacana, vi fotos. Ele contou que tem esquilos no quintal...
As duas levantaram-se imediatamente:
- Esquilos!!! Fique longe. Aqueles ratos americanos...
- Exatamente- apoiou a outra. - Eles acabam com a roupa...
- Acabam com a vida da gente.
- Ah, e toma cuidado com os carrapatos. Porque a gente chega achando tudo lindo, tanta árvore, tanto verde, mas o fato é que aquilo é uma verdadeira selva. Minha filha ficou com o rosto paralisado por causa deles.
Nada como uns goles de vinho para fazer aflorar a verdade.